Uma conversa com os Misters Queer 2022: “nunca me passou pela cabeça participar de um concurso como esse”

Nery, Marley e Jesse

O concurso “Mister Queer 2022” aconteceu no dia 24 de Junho do corrente ano, tendo como o grande vencedor, Nery Vicente. Trazendo um conceito nunca antes visto na comunidade LGBTQIAP+, o concurso teve como um dos principais objetivos, levantar a discussão sobre as dinâmicas e perceções de género entre homens e indivíduos Queers, sendo que, até o modelo de “homem” padrão não teve espaço entre os concorrentes.

O concurso que foi idealizado e realizado por Augusto Preto, foi a concretização de um sonho que Augusto sempre teve. Com o apoio dos movimentos e organizações Queers locais, a produção do concurso contou com a participação do coletivo “Descolorir”.

Nas lentes do fotografo Bruno Aragão, Nery Vicente, Jesse Gaspar e Marley Quinglés, que ocuparam respetivamente o primeiro, segundo e terceiro lugar no concurso, posaram para a Queer People na via pública, e contaram como foi a experiência de participar no primeiro concurso Mister para indivíduos LGBTQIAP+ em Angola.

Como gostariam de ser tratados/as/es?

Nery – “Eu sou o Nereu Vicente, o primeiro classificado do concurso. Tenho 22 anos, vivo com a minha vovó, sou Gay não-binerrr (rsrsrs). E gostaria de ser tratado no masculino.”

Jesse – “Sou o Jesse Gaspar, o segundo classificado. Tenho 18 anos de idade, e vivo com o meu pai e a minha irmã, sou Gay e não-binário. E como o meu colega disse, eu também gostaria de ser tratado no masculino… Quando alguém da minha intimidade me trata no feminino não vejo problema e encaro com normalidade, mas, quando essa mesma forma é feita por alguém que não é intimo meu, eu não gosto, me sinto ofendido, porque muitos fazem isso na intenção de realmente ofender.”

Marley – “Eu sou o Marley Quinglês, o terceiro classificado do concurso. Sou homem Trans Hetero, e gostaria de ser tratado no masculino.”

Por Bruno Aragão

Como foi a vossa experiência durante o casting do concurso?

Nery – “Sendo sincero, no meu caso eu não fiz o casting presencial. Uma semana antes eu tinha visto o panfleto do casting, mas não me chamou muita atenção. No dia do casting, o Vivaldo ligou pra  mim e perguntou se eu gostaria de fazer. Eu não tinha nada para fazer em casa e estava sem dinheiro do táxi para ir tal (rsrsrs). No final do dia, fiz o casting online, mandando as fotos que pediam e respondendo algumas questões, depois de algumas horam informaram que eu fui selecionado… Inicialmente não participei do concurso com o intuito de ganhar, eu estava mesmo só a fugir a louça de casa (rsrsrs). Mas, estando lá e ver meus os colegas, principalmente o Jesse, fez com que me despertasse o interesse. Surgiu em  mim a vontade de competir também, mesmo que eu não ganhasse, o importante era estar lá.”

Jesse – “Inicialmente eu não tinha visto o panfleto, 3 amigos mandaram-me o panfleto e me perguntaram se eu tinha interesse em participar do casting. Eu fiquei em duvidas inicialmente, mas depois de ver qual seria o premio do concurso eu disse `Eu vou participar menina´. Pedi 1000 KZ emprestado na minha irmã, alegando que eu iria lhe devolver assim q ganhasse o concurso (rsrsrs). Eu sou o tipo de pessoa que quando quer uma coisa faz de tudo para conseguir. No dia do casting eu liguei para o meu amigo Denilson para me acompanhar, e no final nós os dois fizemos o casting. Não me deram a resposta no mesmo dia, e eu regressei para casa a pensar que não fui escolhido porque ouvi uma conversa onde alegavam que tinha algumas pessoas que já tinham feito o casting, mas, no período da noite eles me ligaram para dizer que eu passei. Eu fui mesmo com a intenção de ganhar.”

Marley – “Por muito tempo, eu tive muito complexo de inferioridade, e, nunca me passou pela cabeça participar de um concurso como esse. No dia do casting, eu não tinha ido para participar, fui apenas para acompanhar um amigo, mas chegando no local, um dos organizadores me convidou para fazer o casting e acabei por aceitar. Apesar de ter tido vontade de desistir por conta de alguns problemas que surgiram durante o casting e dos ensaios, eu continuei e superei todos os obstáculos, graças a pessoa que estava comigo na época como namorada, e hoje a tenho como melhor amiga.”

Marley Quinglés e Nery Vicente

Como foi o período de preparação para o concurso?

Nery – “Quando eu ganhei o concurso eu esqueci de dar créditos ao Wilson. Ele foi a pessoa que mais teve paciência connosco, pois nós eramos muito irritantes (rsrsrs). Nós não dávamos tanto trabalho ao Vivaldo, mas o Wilson sim. El merece um Óscar por ter tido paciência por nos aturar por todo aquele tempo.

Jesse – “Nós levávamos tudo em brincadeira (rsrsrs)… E eu acho que a brincadeira também teve o seu lado positivo, pois tirava o peso de seriedade que o concurso tinha, deixando a atmosfera mais leve”

Nery – “Foi muito bom o Wilson ter estado a nos orientar, porque ele era rígido mas de uma maneira flexível. Ele nos dizia como é que as coisas deviam ser feitas, mas não era de uma forma que nos fizesse sentir obrigados. Nos deixando soltos com um certo limite.”

Jesse – “Nós realmente demos muito trabalho ao Wilson! Graças a Deus ele não desistiu de nós, porque em uma outra situação a pessoa iria desistir (rsrsrs)… Uma curiosidade que as pessoas que estavam no concurso não perceberam, mas, nós não cumprimos com tudo que o Wilson nos orientou. No momento da apresentação das fantasias, o nosso desfile foi todo improvisado por nós de ultima hora, e ele (Wilson) estava a surta nos bastidores por termos trocado a coreografia (rsrsrs).”

Marley – “O  período de preparação foi muito motivador, produtivo, e, foi uma excelente experiencia. Ele (Wilson) prestava muita atenção em nós, e tinha sempre paciência para corrigir os nossos erros para que no final todos se saíssem bem. Ele não tinha um aluno que recebia mais atenção que os outros, e isso era muito bom.”

Como foi a participação dos coordenadores do concurso durante o período de preparação?

Nery – “Eu tentava não entrar em pânico quando percebi que o Augusto aparecia pouco nos ensaios, pois sei que organizar eventos como esse dá muito trabalho, e obvio que ele não poderia estar sempre presente no período de preparação dos candidatos porque tinha as questões administrativas que precisavam ser resolvidas. E foi exatamente por isso que o Vivaldo estava lá, para nos assegurar que estava tudo a correr como o planejado, enquanto ele (Augusto) cuidava das outras coisas. Ele deixou-nos em boas mãos, que foram as mãos do Vivaldo Félix, e eu agradeço pelo Vivaldo ter estado lá.”

Jesse – “Ele (Augusto) aparecia de vez enquanto, e nos últimos dias da preparação ele passou a aparecer mais vezes por conta de alguns assuntos burocráticos que tinham de ser tratados com os correntes . Ele sempre que passava lá dizia `´olhem o premio que está em jogo meninas. Eu quero pose de meninas, de meninas“ (rsrsrs). E o Vivaldo sempre esteve connosco, até agora.”

Marley – “Apesar dele (Augusto) ter sido uma pessoa muita rígida, foi muito bom. Ele gosta de seriedade e eu aprecio isso! Eu sei que esse projeto não vai parar por aqui, e eu quero muito que o projeto cresça.”

Como foi o período quando a data do concurso começou a se aproximar?

Nery – “Como a minha avó diz sempre, `aí é quando a sassa começa´ (rsrsrs). Os últimos dias foram os mais tensos, porque aí já estava a crescer o desejo de ganhar, estava a crescer o desejo de fazer qualquer coisa para tal (rsrsrs). A pressão crescia mais ainda e a competitividade aumentava. Nos primeiros dias de preparação apareciam poucos concorrentes, mas nas ultimas semanas todos começaram a aparecer. Como apareciam poucos concorrentes eu me sentia mais confortável, eu ficava tipo, `se não estão a aparecer melhor ainda, vou ganhar´, mas quando nos últimos dias começaram a aparecer em peso, eu fiquei preocupado (rsrsrs).”

Jesse – “E ela já falou isso na minha cara (rsrsrs)”

Jesse gaspar vestindo Uático Days

Nery – “Quanto mais concorrentes faltavam para mim era melhor (rsrsrs)”

Jesse – “Quando a data começou a se aproximar o pessoal da produção começou a nos pedir para prepararmos as nossas indumentarias, e, como o Nery acabou de dizer, para mim também se não tivesse muitos concorrentes melhor (rsrsrs). Eles (concorrentes) diziam para mim: ´´você já é uma modelo, o que estás a fazer aqui?“… Neurite você já falou isso na minha cara.”

 Nery – “A pessoa que mais me assustava aqui era o Jesse, ele era a pessoa que parecia mais capacitada a ganhar. Eu olhava para ele e dizia, ´´prontos, esse aqui vai ganhar´´, eu disse pra mim mesma “não pode´´. Por isso fui buscar o vestido de noiva da minha mãe (rsrsrs)”

Marley – “No meu caso foi um misto de sentimentos, angustia e positividade. Para mim, o importante não era ser eleito Mister Queer, o importante era a minha participação e representar os homens Trans. Eu queria fazer algo que aumentasse no conceito do concurso, que era dar mais visibilidade à comunidade LGBTQIAP+, podendo se expressar como elas se sentem mais confortáveis. Isso era o mais importante!”

Como foi o dia do concurso?

Nery – “Eu não consegui dormir! Tive com insónia um dia antes do concurso. No período da manhã o clima ainda estava muito leve, nós os participantes estávamos no Cúbico, e ainda aproveitamos para ensaiar mais um pouco e foi divertido. Mas quando tocou 16h e fomos para o local onde aconteceu o concurso, o clima ficou totalmente pesado. Estávamos todos com os nervos a flor da pele, e, a única pessoa que nos acalmava, que era o Vivaldo, ainda não tinha chegado. Nós estávamos por nós! Comecei a ter pequenos apagões, perdi o meu bloco de notas onde estavam algumas questões que eu estudava para poder responder os júris, tive vários deslizes no Stand Up, nada estava a correr como idealizei (rsrsrs) (estou até com vontade de chorar rsrsrs). Foi muito desafiador! Mas o importante é que no final tudo correu bem!”

Nery Vicente com o figurino do concurso

Jesse – “Eu tive vários ataques de ansiedade! Na noite antes do concurso não tive sono nenhum, eu que sou uma pessoa que acorda sempre tarde. Naquele dia simplesmente acordei as 6h sem precisar do alarme (rsrsrs). Quando chegamos no local da gala, cada um de nós ficou focado no seu mundo, depois começou o momento de nos prepararmos onde foi uma loucura, o Vivaldo não estava lá para nos acalmar e o Wilson nem queria nos ouvir (rsrsrs). O camarim foi uma loucura! Apesar de eu já ser modelo, eu nunca pensei que iria participar de um concurso como esse… Posso dizer que foi um dia muito agitado, mas no final foi muito bom.”

Marley – “Foi muito estranho! No dia da gala eu tive um ataque de pânico e acabei por desmaiar e torcer o pé, mas graças a Deus correu tudo bem, eles me deram assistência medica na hora. Quando eu subi no palco e vi todo o publico, fiquei com medo, por um instante eu quis desistir.”

Jesse – “Quando eu sai do palco após fazer a minha primeira apresentação individual ouvi vários comentários ofensivos contra mim, vindo da plateia.”

Nery – “E ela não foi a única a ser atacado verbalmente”

Jesse – “Eu pude ouvir alguém a dizer em voz alta, ´´vira homem, não te fica bem. Ninguém gosta de ti´´, eu me senti extremamente mal, perdi toda a vontade de continuar a participar do concurso. Mas os meus colegas me deram muito apoio. Uma das coisas que eles falaram que me marcou foi, `´nós estamos fazer o que muitos não têm coragem de fazer`´! E quando subi no palco pela segunda vez para fazer a minha outra apresentação individual, foi um show de aplausos de apoio.”

Nery – “chamaram um dos colegas de put#, falaram para um outro que “você é mulher e fica a esconder isso“. Eu só gostaria de dizer para aquelas pessoas que fizeram aqueles comentários extremamente ofensivos que, “se vocês não estão felizes com vocês mesmos, tentem não acabar com a vida dos outros“, por favor.”

Qual foi o momento mais impactante em cada um de vocês durante a gala?

 Nery – “Para mim foi sem duvidas o momento da fantasia! O Jesse arrasou com aquele look, e quando eu entrei com o vestido de noiva, pude sentir a mesma energia que o Jesse e o impacto que as nossas fantasias tiveram. Então a fantasia foi o melhor momento porque nós arrasamos. Eu, Jesse e… Epah, eu e o Jesse (rsrsrs)!”

Jesse – “Eu nunca dancei em publico, e mexer o quadril dianta de tanta gente era impensável para mim. Mas quando subi no palco para dançar me marcou muito, foi um desafio para mim mesmo.”

Marley – “No meu caso também foi o momento da dança.”

Como está a ser essa fase após o concurso?

Nery – “Ser Mister Queer não é simplesmente ter um rosto bonito! É ter coragem para enfrentar as coisas, saber o que fazer para contribuir na nossa luta. Nós já temos mais de um mês desde o concurso e, até agora as coisas estão a ser duras e delicadas ao mesmo tempo. As coisas vão se intensificar, teremos mais coisas para fazer, mais noites a perder, estamos preparados para isso. E é bom ser reconhecido como o primeiro Mister Queer em Luanda (rsrsrs). Ganhei mais engajamento na mídias sociais, principalmente no Instagram, convidaram-me para desfilar. Tive muito engajamento!”

Jesse – “Só para dizer que nós fazemos parte de um trio denominado “As Trix” (rsrsrs)… Eu ganhei muitos novos amigos, algumas portas foram abertas (Deus está a ajudar). Temos tido muitos trabalhos fotográficos”

Nery – “Por muito tempo eu invejava as grandes modelos por conta dos seus trabalhos em televisões e revistas, mas agora eu vejo o quão exaustivo é esse tipo de trabalho.”

A vossa participação no concurso trouxe alguma instabilidade na vossa vida amorosa?

Nery – “Sim! Antes do concurso eu estava a conhecer alguém, no período dos ensaios passei a dar pouca atenção a essa pessoa, os ensaios nos ocupava muito tempo, e falávamos muito pouco. E tudo ficou pior quando fui eleito o Mister Queer! No dia seguinte após o concurso, eu recebi uma mensagem dele a terminar o nosso relacionamento, com a justificativa de que, eu andava muito ausente, e, como eu também ganhei um monte de pretendentes (segundo ele), achou melhor se afastar. Eu simplesmente disse ´´tá bem!“.”

Jesse – “Eu antes do concurso tinha terminado um relacionamento que não era nada saudável, e eu jurei para mim mesma que daí em diante não iria mais me preocupar com relacionamentos, mas sim com a minha vida profissional. E estou assim até agora!”

Marley – “No meu caso, as minhas exs voltaram a me contactar (rsrsrs)”

Nery – “E valeu apena o relacionamento ter terminado, e eu ter investido mais no Mister Queer.”

Valeu apena terem participado do concurso?

Nery – “Muito, muito mesmo! Conheci pessoas incríveis que pretendo levar para vida, abriram-se portas que eu já mais imaginei. Só temos que aproveitar as oportunidades!”

Jesse – “Eu gostei muito! Não me arrependo de ter participado do concurso.”

Marley – “Valeu apena ter passado por tudo isso. Meus problemas de baixa autoestima e aceitação foram reduzidos, e foi um processo muito importante.”

vestidos Uático Days

O que vocês esperam para a próxima edição do concurso?

Nery – “Eu espero mais entusiasmo ainda dos próximos concorrentes. Termos participado do Mister Queer e sairmos como vencedores, fez com que muitas outras pessoas também criassem a vontade de participar do concurso, temos recebido mensagens de vários pessoas a dizer que também gostariam de participar. Acredito que na próxima edição a competitividade vai ser bem maior, e eu vou amar subir no palco para entregar a faixa do próximo eleito.”

Jesse – “Eu espero que na próxima edição os concorrentes estejam mesmo dedicados e dispostos para o concurso, e quando forem participar façam amigos, pois serão eles que te vão apoiar.”

Marley – “Eu espero que a comunidade possa aderir em peso na próxima edição, não se limitem, que possam vir dar mais visibilidade ainda na nossa comunidade. E eu gostaria que a banca de jurados pudesse ser a mesma deste ano para a próxima edição, pois eles realmente sabiam o que estavam a fazer.” Nery, Jesse e Marley, deram inicio ao novo projeto visual da Queer People, “Corpos Queers na Via Publica”, que consiste na introdução de corpos Queers nas vias de Luanda no auge de suas expressões de género.

Nery, Jesse e Marley, deram inicio ao novo projeto visual da Queer People, “Corpos Queers na Via Pública”, que consiste na introdução de corpos Queers nas vias de Luanda no auge de suas expressões de género.